Sopro
21–22.07.2020
oMuseu, FBAUP
“Não foi o que desejámos: notas para a Sopro possível”:
O ano lectivo de 2019/20 iniciou-se como habitualmente e com expectativas relativamente à qualidade e diversidade dos estudantes seriados para a especialização em Escultura do Mestrado em Artes Plásticas (MAP.E.FBAUP). Nenhum dos estudantes da turma se conhecia, como é comum em programas de pós-graduação. A Mostra Curricular UmPontodeSituação19|20 permitiu a fruição presencial e também a demonstração dos laços já iniciados entre o grupo, num convívio e partilha académicos muito salutares e profícuos para os seus percursos. As formalizações e materializações plásticas da Isabel Dores, da Pilar Mackenna, da Letícia Maia, da Clarice Cunha e do Rui Mota com formações, experiências e origens distintas, bem como os temas, questões, preocupações e valias, potenciaram a diversidade das experiências concretizadas até janeiro de 2020, e decorrentes dos seus planos individuais de trabalho com estruturas, dinâmicas e pressupostos diversos e, por vezes, complementares.
Entretanto, no final de fevereiro surgem notícias da aproximação da pandemia e os primeiros dias de março divulgam o estado de emergência nacional e consequente confinamento. Mais mudanças, alterações e ajustes, mas, agora para todos: um choque, um relâmpago que alterou, em tudo, as nossas vidas. Facilmente, se entenderá a impossibilidade de lecionar, Artes Plásticas, Escultura, e, concretamente, a UC Estúdio em Escultura, quando privados de quase tudo o que faz parte dos processos, mas também dos resultados.
Sem acesso a oficinas, sem o apoio presencial, sem as ferramentas, sem a interajuda vivida em direto e em contacto, tivemos que adaptar, rapidamente, a vida e uma realidade académica para a qual nenhum de nós estava preparado. O agora, o hoje, tornou-se distinto, sempre em casa, com e através de monitores.
Não foi fácil para nenhum de nós: foi uma experiência irrepetível e única, nem que se seja porque foi a primeira das nossas vidas.
Procurámos ampliar a sinestesia, a visão háptica, através de ferramentas e recursos tecnológicos acessíveis e que permitiram colmatar algumas lacunas mantendo as sessões, muitas vezes bem mais longas. Estivemos em grupo e individualmente em atendimentos sem distrações e com outras possibilidades que se acrescentam ao fazer em contacto directo e pessoal. Conseguimos muito, mas muito também faltou ou teve que ser ajustado ou adiado.
Deu-se prioridade imediata à atenção a tudo… ao tempo, ao detalhe, ao gesto, mas também ao mundo, ao global, ao que mudou para todos em todos os lugares.
A primeira preocupação foi apelar à imaginação e criatividade, aguçando as emoções, as sensações, sentimentos e sentidos. Foi fundamental não desistir nem perder o ânimo, não permitir que o desânimo, desistência ou que a impotência se apossassem de nós.
No dia 21 de julho gostaríamos de ter estado todos juntos com todos aqueles que quisessem estar também. Como se fosse um Sopro de alívio e não um medo e receio do Sopro, ou do sussurro.
Depois deste longo e estranho semestre, daquilo que foram estes meses, aconteceu a Sopro. Mostra Curricular de Estúdio em Escultura. MAP.2020: o final de um percurso.
Não vos vou maçar mais. Já falei muito, já me ouviram muito e eu a vocês, nesta espécie de vazio que nos habita, com e como corpo, nas palavras que enunciam o projecto da Isabel Dores, o peso é muitas vezes insustentável, e o vazio transforma-se em cheio ou em espaço negativo. Nos seus textos podemos ler que a distância é experienciada numa “dualidade do próprio corpo, o corpo e o espaço invisível, e a relação do corpo com o objeto (…). O volume, permeado por um vazio, é desenvolvido e reconhecido pelo aprisionar da matéria. O espaço vazio, perde a sua propriedade estéril e passa a habitar o outro lado: um nãomundo de espaços negativos que vagueia entre uma presença e uma ausência do corpo”.
Com aproximações de ordem conceptual mas com um distanciamento enorme na expressão desses corpos no e com o espaço, o corpo resistência da Letícia Maia, é simultaneamente doce e amargo, em níveis, graus e camadas de leitura, participação e fruição, diversos. “D Ó C I L_metáforas do poder. A performance como resistência poético-política, parte da prática artística autoral onde nos apropriamos da palavra dócil em seus diversos significados, para tomá-la como jogo metafórico na formulação de estratégias estéticas”. A Letícia questiona como “as relações de poder agem nas relações sociais e, consequentes influenciam na construção da nossa subjetividade (…). Considerando que a performance, enquanto prática artística, lança um olhar crítico para a sociedade e elabora ações que provocam o imaginário social a repensar possibilidades performativas do corpo, reguladas pelas relações de poder (…) como ato de resistência poético-política”. Um diálogo entre ética e estética, entre o poder, a submissão e a subordinação incorporadas social e culturalmente.
A Clarice Cunha e a Pilar Machenna tiveram, neste período de confinamento, necessidade de incluir no processo e nos trabalhos seu corpo físico visível, o que antes não acontecia. Talvez de passagem e pelas necessidades impostas, que entendo similarmente como abertura a outras possibilidades que ampliam os seus pressupostos e projectos.
Monumental descartável vem com a Clarice e desenvolveu-se desde o início deste ciclo. O trabalho está sempre dependente da experiência vivencial da Clarice no local onde vive e com qual se relaciona: vem dela e das coisas do lugar.
Sumariamente, são composições híbridas que conjugam matérias produzidas pelo ser humano com matérias naturais, nas quais “estabeleço relações de complementaridade e oposição refletindo sobre o ambiente construído a partir da interferência humana”, e através de processos “de reflexão sobre o acúmulo, o consumo, a cultura material da arquitetura local e dos objetos domésticos. Observo o espaço construído da cidade, investigando o diálogo entre matérias (…): um processo de coleta, catalogação, reorganização e resinificação”. As esculturas remetem quer para maquetas que sugerem a escala arquitetónica como para cenários, que se organizam e compõem os espaços, “criando mais camadas de resinificação destes materiais que escolhi trabalhar”.
Por outro lado, a Pilar e as suas Constelaciones y Derivas, surgem como Diagramas para la construcción de un pensamiento visual-objetual, como enuncia no título do seu plano e projecto de investigação. Para esta estudante chilena que, como a Letícia e a Clarice, atravessaram o Atlântico, “el desafío de ésta investigación, se sitúa en la posibilidad de comprender el vínculo del ser humano, su entorno y los sistemas en los que está inscrito, naturales o urbanos, a través de una especulación visual y material llevada al campo de las artes plásticas” (…) A subtileza, leveza e apuramento compositivo pela simplicidade formal, são caracterizantes e cunhados por uma delicadeza de gestos e ações contidas nos objectos tridimensionais com organizações espaciais variáveis, cirando diálogos ou conversas entre si, ou permanecendo no tempo através das fotografias.
Para finalizar, faz sentido tentar responder ao que será O carácter ineliminável da arte aprofundando estratégias de simplificação formal e processual, proposto pelo Rui Mota, e já anunciado neste texto.
Segundo o Rui, trata-se de exercitar, filtrando, e procurando entender o que será imprescindível, na prática e experiência artísticas. “Forma, Conteúdo, Espaço, Tempo e Público são os resultantes pilares cujos primeiros dois e os seguintes três compõem, respetivamente, o que se reconhece por Objeto e Contexto. Este último, que na maioria dos casos continua a ser, pelo menos em parte, ignorado, constitui-se como eixo de investigação analisando a recíproca influência que trava com os Objetos e delineando métodos conscientes de modelar o que não se pode excluir. Do contexto da forma à forma do contexto, explora-se o Espaço, o Tempo e o Publico como participantes indispensáveis da equação artística, mediante uma prática, predominantemente escultórica, que se foca na presença do Objeto além dos seus limites físicos”.
Não foi nada fácil, nada foi simples, mas aconteceu e fica registado dentro de nós como uma conquista.